As pernas, de tão fracas, ainda não conseguiam se sustentar muito tempo sobre o chão. Foram 36 dias no hospital, cerca de 480 horas intubado e 26 quilos perdidos no caminho. Na noite daquela sexta-feira, no apartamento emprestado de uma amiga, Renan Dal Zotto ainda embaralhava as lembranças e se esforçava para elencar tudo o que vivera nas semanas anteriores. Naquele momento, ligou a caixa de som e, em meio à lista de músicas seu celular, escolheu “Sweet Caroline”, do cantor americano Neil Diamond . Quando as primeiras notas começaram a preencher a sala, Renan se levantou da cadeira de rodas, se apoiou sobre a esposa, Annalisa, e dançou.
Renan Dal Zotto, técnico da seleção brasileira de vôlei, ficou mais de um mês internado no Hospital Samaritano, em Botafogo, no Rio de Janeiro. A primeira dose da vacina, todo o seu passado de atleta e mesmo a boa forma física que mantém até hoje não impediram que a infecção por coronavírus o deixasse em risco. A esperança de que a internação fosse rápida e sem sustos se perdeu à medida que os pulmões já não conseguiam puxar o ar. Em mensagem à esposa, às 05h26 do dia 19 de abril, pediu:
– Amor, passei noite de m***. Se o caminho é a intubação, pede para fazer logo, por favor. Não aguento mais. Fala com os médicos agora cedo. Te amo.
Foi o início de um longo percurso que ainda não terminou. O técnico recebeu alta no dia 21 de maio. Mesmo antes de deixar o hospital, Renan deu início a um intenso e doloroso trabalho de fisioterapia. Precisou reaprender praticamente todos os movimentos motores. Sem força, cada passo exige um esforço imenso e causa dores que ainda permanecem. Na última semana, o treinador recebeu a equipe do Fantástico em uma clínica de reabilitação no Humaitá, também na Zona Sul do Rio de Janeiro. Lá, faz duas sessões diárias, seis dias por semana. O objetivo é um só: estar à beira da quadra nas Olimpíadas de Tóquio. O tempo, porém, é curto, e o caminho, longo.
O caso de Renan não foi simples. O técnico precisou ser intubado duas vezes. Logo após a primeira intubação, passou por uma cirurgia vascular por conta de uma trombose aguda na perna esquerda. Ali, correu riscos, inclusive, de precisar amputar a perna. Naquelas primeiras semanas, o quadro do treinador exigiu atenção permanente.
– No período que eu estava intubado, e eu obviamente não lembro de nada, mas eu vivi situações que eu lembro perfeitamente. E são histórias que eu cheguei a escrever até. Talvez pela medicação, pelo excesso de drogas lícitas, a cabeça fica… Eu me vi duas vezes morto. Em uma, eu cheguei a ver uma matéria dizendo que eu tinha partido e deixado esposa e dois filhos. Eu realmente vivi isso – diz o técnico.
As Olimpíadas, naquele momento, sequer eram cogitadas. Annalisa Blando, casada com Renan há 32 anos, tinha essa preocupação ainda no início da internação. Por saber do sonho do marido, quis acelerar os passos e perguntou ao médico responsável pelo caso, Dr. José Gustavo Pugliese. Foi quando teve a exata noção de que a urgência era outra.
– A vida dele teve sob risco durante bastante tempo. Durante duas semanas, pelo menos, ele esteve sob risco. Tanto que eu até falei com a esposa que a gente não conseguia nem colocar Olimpíadas em perspectiva. A gente tinha perspectiva de tirar ele do CTI. Ele tinha uma infecção grave com disfunção orgânica, disfunção respiratória e disfunção circulatória. Isso significa uma infecção com risco de vida. Eu falava com ela que eu fazia previsões a cada doze horas, não podia fazer uma previsão daqui a dois meses. Os pacientes são muito dinâmicos. Mas, graças a Deus, a gente conseguiu, ele conseguiu sair e está se preparando – afirmou o médico.
Pugliese assumiu o caso de Renan antes da primeira intubação. O médico, então, passou a adotar uma postura prática e direta. Durante todo o tempo, manteve contato com Annalisa, deixando clara a gravidade do quadro.
– E eu criei uma relação muito boa com a Anna, porque eu sempre fui muito sincero com ela. Falei com ela que pior do que ter que intubar alguém é não reconhecer que alguém precisa ser intubado. Então, às vezes você reconhecer a situação adequadamente para ter a chance de reverter. Eu, naquele momento, eu não podia esperar que ele fosse estar hoje como ele está. E é muito gratificante ver hoje nessa situação. Agora sim, pode pensar nas Olimpíadas. Agora, a gente só pensa no ouro olímpico. E não vale nem outra medalha, só ouro.
O casal mora em Florianópolis. Quando começou a ter os primeiros sintomas de Covid, o técnico estava em Saquarema com a seleção, ainda no início dos treinos de preparação para as Olimpíadas. Annalisa, então, viajou para o Rio de Janeiro para ficar com o marido em um apartamento emprestado.
A empresária passou a acompanhar de perto todos os processos do tratamento de Renan. Foi ela, também, quem criou uma espécie de corrente de informações e apoio de amigos e familiares. Há alguns anos, o casal já havia passado por outro momento difícil, com a descoberta de uma leucemia no filho caçula, Gianluca, hoje recuperado. A postura firme e prática fez com que, mesmo nos momentos mais difíceis, Annalisa conseguisse ser objetiva.
– Tem coisa que a gente não comanda, né? A gente não comanda, a gente não comanda essa pandemia. Eu não comandei meu filho ter tido leucemia. É desesperador, mas a gente tem que agir. Quando a gente não é a vítima, a gente tem que agir, a gente tem que cuidar dela, né? Depois eu chorei, né? Mas primeiro a gente tem que agir.
Em casos tão graves, a recuperação leva tempo. Renan, porém, tem pressa. O técnico deseja estar à frente dos treinos da seleção assim que a equipe voltar da Liga das Nações, que está sendo disputada na Itália, no fim de junho. Serão cerca de dez dias de atividades em Saquarema antes da viagem para Tóquio.
– Ali, já quero estar próximo aos meus 100%. E eu sei que, para eu estar assim, vou ter que correr muito atrás aqui, fazer tudo o que for solicitado, todos os exercícios. Eu estou fazendo seis dias por semana, direto, direto. Aos sábados, que é quando a clínica está fechada, os profissionais vão na minha casa, a gente trabalha. Eu estou me dedicando demais, demais. E tem de ser, não tem como ser diferente. Tem uma meta muito importante.
– Por alguns momentos, eu achava que nunca mais ia conseguir sair daquela cama. Achava, na minha cabeça, que nunca mais conseguiria levantar. Vieram os estímulos dos fisioterapeutas. Diziam: “Vamos ter que sentar”. E eu não conseguia sentar, não conseguia. Eu achava que tinha uma costela quebrada. Eu falava para eles: “Eu não tenho como”. A minha respiração estava muito curta, eu não conseguia colocar ar para dentro. Fizeram exames, não tinha costela quebrada, mas encontraram um pneumotórax (presença de ar que resulta no colapso total ou parcial do pulmão). Aí parece que tiraram a dor com a mão. E a coisa começou a evoluir – disse.
Doutor Felipe Malzac é médico da seleção brasileira. Acompanhou, ao lado de Annalisa, todo o período de internação de Renan. Hoje, comanda a recuperação do treinador. Durante as sessões, Renan tem reagido bem ao esforço físico. Por isso, o otimismo em relação a Tóquio.
– Grandes chances de estar em Tóquio. Digamos, hoje, 99%. A reação dele está sendo muito boa. A gente tem todo um planejamento com a nossa equipe multidisciplinar para saber quais estímulos daremos a ele dia após dia. Por exemplo, na segunda-feira ele faz a parte de carga junto com a parte de força. Na terça-feira, faz a parte de fisioterapia neuromotora. Na quarta-feira, a gente tem um fisiologista que trabalha toda a parte dele de cardiopulmonar, através de alguns sprints na bicicleta. E ele veio reagindo muito bem a todos eles, fazendo com que a nossa equipe tenha sempre que elevar o nível de treinamento para ele responder cada vez melhor. Então, a nossa perspectiva para ele é muito boa.
Já há, inclusive, a preocupação sobre o nível de estresse que Renan terá de enfrentar durante os Jogos em Tóquio. O técnico, porém, já tem acompanhado os jogos da seleção na Liga das Nações. Faz anotações, estuda adversários e, claro, se exalta nos momentos mais complicados. Por isso, Malzac acredita que Renan estará preparado para guiar o time nas Olimpíadas.
– Toda a parte dele, fora de quadra, também é uma coisa que nos preocupa, que a gente tem que chamar atenção. Todo nervosismo que existe, mas certamente ele estará também preparado para isso. Porque ali você eleva todo o nível de estresse do indivíduo, e o nível de estresse está diretamente relacionado à parte cardiológica, à parte pulmonar. A gente está treinando ele para isso também. Eu tenho certeza que ele, em casa, está sofrendo muito mais do que ele à beira da quadra, lá com os atletas. Então, ele já está fazendo o treinamento na Liga agora. De paciência, tranquilidade, de não poder passar as informações que ele gostaria, evidentemente. E esse é o melhor treinamento possível para ele.
Enquanto Renan esteve internado, mesmo nos dias em que o marido permaneceu sedado e inconsciente, Annalisa escreveu mensagens. Durante o período, contou novidades, encaminhou recados dos filhos, demonstrou saudades e conversou, ainda que sem resposta. Foi a forma que encontrou para se manter firme e mostrar que estava ali.
– Depois que ele foi intubado, ele não estava mais com o telefone, mas às vezes eu mandava mensagem, eu conversava com ele. Depois, a gente viu junto. Aos poucos, ele foi retomando consciência. E a gente foi conversando. A gente tem muito assunto. Eu tinha muita saudade. Tinha saudade, eu queria que ele conversasse, queria contar as novidades. Meu amigo, meu parceiro. Eu não conseguia interagir com ele, eu mandava música.
Foi da presença de Annalisa que Renan buscou forças. Ao sair do hospital, em meio à confusão das memórias, uma única certeza.
– Eu não sei como, mas durante todo o tempo eu tinha o conforto porque sabia que estava de mãos dadas com a Annalisa. Tempo todo, o tempo todo assim. Era o que me segurava. Eu tenho certeza depois, quando eu acordei, que que foi isso que me salvou, sabe? No sentido de uma corrente incrível que teve, de fé, de orações, de amigos, familiares. E acho que isso influenciou demais. Influenciou demais mesmo. Eu tenho lembranças muito pesadas. Mas que, quando eu acordei, eu comecei agora a ver as mensagens e tudo, é difícil. Minha família sofreu muito.
O sentimento, agora, é de gratidão. Tanto que, após 32 anos de casado, Renan voltou a pedir Annalisa em casamento. Ao som de “Sweet Caroline”, música que costuma embalar jantares da família, a vontade de seguir em frente.
– Eu pedi ela em casamento de novo. Nós vamos fazer. Ela foi uma guerreira, ela foi incrível. Foi parceira demais. Foi incansável. Eu falei para ela: “Eu quero ficar bom, eu quero retribuir”. Quero cuidar dela para o resto da vida. Meus filhos foram incríveis também, ficaram lado a lado comigo. Mas a Anna, não tenho palavras para agradecer. Começo a falar disso e me emociono. Temos muita estrada pela frente.
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